O moço e o velho
 



Contos

O moço e o velho

Illy Guimarães Barquette


Ivan pegou a garrafa cheia de café e foi deitar na rede. Olhava para fora, mas o interesse não estava no pôr do sol, e sim na casa da frente, a qual se tinha a impressão de há muito estar abandonada, mas onde morava aquele senhor que ele não sabia o nome. Já havia perguntado a outros vizinhos, mas nenhum deles tinha essa informação, assim como não sabiam há quanto tempo o senhor vivia ali. Ivan parecia ser, na verdade, o único ali na rua a demonstrar curiosidade por aquela figura anônima. Procurava, às vezes, entender por que passava tantos dias espiando tão pouca ação; aquela vida se resumia a acordar, ligar a tv no futebol - através da cortina era possível ver a tela sempre verde, com os movimentos embaçados -, sair de casa, comprar uma caixa de cerveja, voltar e assistir mais futebol. E só. Não era possível saber nem para qual time torcia, já que nunca se ouvia um grito de comemoração.

Foi mais ou menos na quarta xícara de café que se deu conta. Observava tanto o velho porque se imaginava em situação parecida quando ele próprio tivesse seu punhado de cabelos brancos. Com vinte e sete tinha dificuldade para fazer novas amizades e facilidade para brigar com as antigas; bebia em casa sozinho quase todos os dias - e a cerveja era só para começar; era dispensado de empregos com a mesma frequência que por garotas. Não era lembrado e nem fazia questão de ser.

“Jesus, perto de mim o velho vai bem”, pensou com espanto. “E minha aparência não está muito melhor”.

Enquanto fazia esse exercício de comparação o velho apareceu dobrando a esquina. Mas foi só quando já perto de casa que Ivan o reconheceu com dificuldade, parecia um sujeito completamente diferente. Vestia terno e gravata, usava gel no cabelo escovado, o sapato brilhava, o andar elegante. Além disso não carregava a já tradicional caixa de cerveja, mas uma garrafa de vinho daquelas que pobres coitados como ele manuseiam, mas nunca chegam a comprar.
Uma bela canção se fez ouvir e a tela da tv permaneceu desligada. A música contagiou o coração do jovem, que vislumbrava um pouco de esperança para aquele que há pouco descobriu ser uma versão futura de si.

“Se não é tarde demais para ele, talvez não seja para mim. Ainda há, afinal, momentos felizes para desajustados como nós”, refletiu. Quase sem querer começou a fazer planos para a vida, num jorro de pensamentos desordenados e otimistas, como se a partir daquele momento tudo fosse ficar bem. Então um estampido do outro lado da rua se sobrepôs aos versos da canção que tocava e aos seus devaneios. E mesmo depois, com as luzes da ambulância, repetia: “tudo vai ficar bem, tudo vai ficar bem”.

***

Illy Guimarães Barquette nasceu em Taguatinga, DF. É formado em Biblioteconomia pela Universidade de Brasília e acredita no poder transformador da literatura.

 

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